Bernat Metge é Bernat Metge, obviamente, mas o princípio da identidade – ‘aquilo que é igual a si mesmo’ – aqui se distorce e dissona por ele ter nascido em 1340 e em 2016, com o fato (factum) da vida histórica na Barcelona da Idade Média e com o feito (fictum) dele estar representado – tornado de novo presente – na evocação fractal do poeta Lucas Margarit que o ‘redivive’ em Buenos Aires. Nesse poema de poemas escrito à maneira de biografias elusivas dos trovadores provençais, chamadas “vidas”, Bernat deve ser Bernat e, no entanto, a figura atemporal e anacrônica toma corpo na relação com Tirésias, Eurídice, Próspero, entre tantos outros não iguais a si, “evocando palavras que não esperam”. E que Bernat seja Bernat, enfim, mas facultativamente, e intervalando-se, com a voz de Metge soando através de Margarit ou em assonância com uma longa linhagem de ‘histórias apócrifas’ e ‘vidas imaginárias’ (penso, no século XX, em Marcel Schwob e em Karel Capek, em Borges ou em Broch) e que sobrevém ao presente com o vermelho biografado de Anne Carson, seus Héracles e Gerião. Durações.
O que o poema Bernat Metge enuncia é a escritura dúplice e fantasmática, em que “tempo e treva se encontram como dois insetos/quando caem próximos da pele”, compondo a aparência externa (a sua morfologia) de uma vida extinta ao modo de um verso d’As Metamorfoses, de Ovídio (15, 253): ex allis alias reparat natura figuras (a natureza recria as formas umas a partir das outras). Próximos da pele imprópria, Margarit e Metge, feito formas depois de formas, intervalam o fictício, o fatual ou o fatídico, e, nesse mundo do texto, todo o espaço curva-se e, então, o tempo descompassa. Por exemplo: a Ariadne dos labirintos de Creta e um círculo de pedras se encontram diante do mediterrâneo e uma resposta do mar, na hipótese do poema, seria essa: “no início no início no início no início no início no início”. É um pleonasmo e, ao mesmo tempo, o princípio ativo, porque esse Bernat Metge que no início era precisamente Bernat Metge, se desmembra no ser sido e ainda sendo, como eco de uma frase de Samuel Beckett: “é preciso continuar, não posso continuar, vou continuar”. Esta é uma recoleção de inícios.
- Dennis Radünz
- Autores: TRADUTOR: TERENZI, JUAN | AUTOR: MARGARIT, LUCAS
- Editora: MICRONOTAS
- ISBN: 9786588084045
- Páginas: 84