A historiografia e o jornalismo têm cada qual a sua linguagem, quase diversa à literatura, que tem como princípio, se concordarmos com Roland Barthes, trapacear a língua e trapacear com a língua.
Muitos historiadores comunicadores, de modo geral, usam, quando tentam migrar de uma narrativa à outra (da suposta verdade dos fatos à suposta mentira da literatura) o mesmo ritmo, vocabulário, sintaxe e lugares comuns, típicos de textos com compromissos com a his- tória e os fatos. Sem juízo de valores, apenas constato tal fato porque Ana Brancher é historiadora, autora de livros importantes sobre história de Santa Catarina, mas consegue compreender que se não é possível trapacear a língua fazendo história, na literatura essa liberdade é não apenas condição fundamental como marcadora da diferença.
Ao mesmo tempo em que pela linguagem a autora faz alta literatura, traz ao leitor fatos importantes da história, porque faz parte da sua formação e porque tem noção da distinção clara entre as formas narrativas. E isto não é pouco.
Se a história tem uma linearidade, a linha percorrida pela autora é tortuosa, cheia de idas e vindas, por- que é preciso que as relações entre a história sejam percebidas, porque a história se repete, e, no Brasil, é marcada pela volúpia patrimonial de uma elite econômica, que confirma o que escreveu Joaquim Nabuco: "A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil".
As várias Catarinas desta rapsódia prosaica, como define a autora, passeiam pela história como protagonistas, não apenas como coadjuvantes, quando contadas por esta mesma elite ainda de mentalidade escravocrata. As Catarinas mameloucas, cada qual com sua voz, refletem sobre a condição a que foram submetidas pela história, mas sempre trapaceando a própria história, contando de um modo revolucionário e, ainda que seja tautologia afirmar, literário.
Ana Brancher faz literatura, mas com respeito pela história. Ainda que tudo aqui seja invenção, nada é falso. E o que dá o tom da rapsódia é exatamente a subversão da língua pela linguagem. E isto não é pouco.
- Fábio Brüggemann
- Autores: AUTOR: BRANCHER, ANA
- Editora: ESTÚDIO SEMPRELO
- ISBN: 9786599730924
- Páginas: 110